domingo, 21 de março de 2010

LUIZ GUIDES - dezessete anos produzindo arte


Por Mara E. Weinreb
Luiz Guides, artista e residente do Hospital Psiquiátrico São Pedro, completou no último dia 20 de agosto de 2007, 80 anos de idade.
Data que foi devidamente lembrada pela Oficina de Criatividade, junto ao artista e sua obra.
Resistindo ao impossível, mesmo exilados, sua presença se impõe. Ir a estes tristes lugares, manicômios, periferias, alienação e esquecimento, lá temos arte em meio a incertezas e dúvidas, que se instaura no estranhamento de uma silenciosa ousadia. Buscar pelo não realizado, pela necessidade urgente de realizar, deslizar a tinta freneticamente, repetidamente, pintar e pintar até cansar, cansar o manicômio em seu torpor, de intervenções, ações... Marginal e obtuso, o artista pede um olhar desviante, que nos leva a ver de modo largo, inclusivo e questionador, onde estranhos atores passam a ser participantes, mesmo nestes tristes lugares, de exclusão e de não ser, não ser cidadão.



Assim encontramos Luiz Guides, com uma obra que joga com a surpresa e com o inusitado, provocando os sentidos e os conceitos nas artes. Com uma grafia muito particular, os signos vão compondo uma espécie de “escritura das revelações”, parafraseando Foucault (2002), quando números, círculos, flechas, cruzes e demais elementos são recobertos por azuis, verdes, violáceos ou vermelhos. Aqui texto é imagem, vertiginoso ou sonhado, por vezes, quase desaparece, retornando em outro momento, em um espaço incerto e flutuante, referido por Klee (2001), com suas diferenças próprias.



Luis Guides é morador do Hospital Psiquiátrico São Pedro de Porto Alegre, desde 1950, e um dos mais antigos freqüentadores da Oficina de Criatividade do hospital. A implantação da Oficina, no ano de1990, muito se deveu a iniciativa da psicóloga Bárbara Neubarth, seguindo a idéias de Nise da Silveira, seus freqüentadores são estimulados a se expressarem através das tintas, em um local de acolhimento e natural aceitação.
Estudando o acervo de Guides, percebemos que, inicialmente as cores surgiam sobre o papel em uma vertiginosa profusão caótica, e depois mais geométrica, com disposições retangulares. Sua arte clama por um estado atual, ou melhor, “inatual”, com uma independência entre as pinturas, ao mesmo tempo em que são preservadas relações entre si. Surgem séries de pinturas com elementos que se repetem, mas em se repetirem, produzem variações, dando às suas pinturas intensidades cromáticas únicas, que sem uma intenção consciente, revelam extensos painéis.



As disposições retangulares na obra de Guides são chamadas por Rosalind Krauss (1996) de retículas, prenderem os verdes, os azuis, como sua preciosa escritura, ao mesmo tempo em que, tornam-se linhas de fuga, estendendo-se além do suporte. Luiz Guides está entre a linha e a mancha, e se quisermos seguir literalmente Wolfflin (2000), entre o linear e o pictórico, o que nos remete a pesquisa de Ingrid Geist (2005 com os povos Huicholes da Serra Madre Ocidental do México, relacionando este processo artístico com o tema mítico “Tempo de escuridão”, o borrar e traçar sucessivamente sobre marcas visíveis são identificadas com o “tempo da luz”, que com sua aceleração é comparada a uma força desestruturante de relação tensa, e a lentidão construtiva se refere a uma potência estruturante, que reconstitui o espaço e o tempo. Assim Guides, organiza-se em retângulos e círculos, e ao encobri-los com camadas de cores obscurecem seus segredos, subterrâneos e insondáveis, preservados e protegido,s agora, dos olhares de um mundo alheio a suas ações.
Ante a folha branca observamos uma fileira numérica, iniciando com o número um e variando até chegar ao número sete, na metade inferior da folha, a seguir, divide o espaço com linhas horizontais e depois com verticais, por vezes coloca círculos e espirais nos retângulos inferiores, e por vezes os distribui por todos os retângulos. Esta disposição geométrica recebe cruzes, flechas e pequenos riscos sobre as linhas que dividem os espaços do papel. Sua mão parece deslizar, tomando meia distância do pincel, como uma dança, ou melhor, com passos e compassos musicais. Suas pinceladas começam a surgir, como que sabendo o rumo a tomar, firmes e determinadas segue até alcançar a finalização. Dando-se por satisfeito, Luiz levanta-se e fica por alguns instantes em pé, junto ao cavalete, em silêncio mostra-nos que está pronto para voltar à sua unidade, quando não é o caso, sinaliza que deseja mais uma folha, e recomeça outra vez. Estas etapas vêm se repetido por anos, como um gesto ritual, com pequenas variações. Ante a estes processos de relações inconscientes podemos falar de uma desrazão que irrompe os limites de uma loucura, que agora não tem vez.



Vemos nossa proposta como uma denuncia de um mal-estar, um mal-estar que desacomoda e instiga este olhar à margem. Rompem-se as certezas de um mundo cada vez mais globalizado, ou mundializado, que devora os produtos e narrativas locais, realocando-os em lugares de consumo, esta visão sobre as periferias marginais tem aumentado à medida que acontece uma tendência à homogeneização. Agora, destes estranhos territórios, entremeios, lugares possíveis, margens, entre muros não consagrados, uma produção artística avança, ousando por campos já semeados, e hierarquizados, negociando sua diferença, ao interagir com processos contemporâneos em arte, compondo narrativas no espaço do manicômio que lhe serve de suporte, ateliê e acervo, pleno de sentido.
Referências:
• FOUCAULT, Michel. Isto não é um cachimbo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2002.
• KLEE, Paul. Sobre a arte moderna e outros ensaios. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.
• KRAUSS, Rosalind. La Originalidad de la vanguardia y otros mitos modernos. Madrid: Alianza, 1996.
• www.visio.fr. Ingrid Geist: El tiempo de la oscuridad: borrar y trazar lo visible, vol. 7, no 3-4.2005.
• WOLFFLIN, Henrich. Conceitos fundamentais da História da Arte. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
Mara E. Weinreb é psicóloga e especialista em Psicoterapias Humanísticas Existenciais pela PUCRS.
Mestre e doutora em História, Teoria e Crítica da Arte, no Instituto de Artes da UFRGS.
Atualmente realiza pesquisa junto ao acervo do artista Luiz Guides. Docente da Feevale.
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